Nas histórias que nos contavam, a floresta era escura, o caminho longo e não havia ninguém ali para nos ouvir ou acompanhar. Nossas vontades nunca eram atendidas e acabávamos solitárias em meio a um mundo adulto, cinza e injusto. Das histórias de infância pouca coisa muda comparada com a realidade. Diria ainda que o dia a dia hoje dos pequenos é muito, muito pior que nos contos. Salvo as meninas que ainda tinham a possibilidade de serem salvas por príncipes e assim substituir a tutela de seu corpo e vontades da família – que fatalmente era representada pelo avô ou pai – pelo escolhido. As histórias mudaram pouco desde então, mas hoje as mulheres estão acordando.
Essa luta para a mudança de realidade ainda nos fragiliza e oprime e encarcera e violenta. Raras as meninas que nunca foram abusadas, essa é uma triste realidade no mundo inteiro. Assim como são raras as pessoas que chegam onde sonham chegar com seus esforços e estudos. Divido aqui os dois temas que abordarei hoje e no próximo texto.
Quem me acompanha sabe que evito falar de dor de maneira vulgar ou explícita. Sempre convido para a reflexão de um tema maior. Mas os dias têm nos lançado ao chão fétido do fundamentalismo. Daqueles que não veem o outro como um ser de direitos e tentam tresloucadamente impor critérios morais inconcebíveis. Julgar e determinar o que é do outro passou a ser a grande busca daqueles que não encontram discernimento e tampouco possuem qualquer tipo de humanidade ou bondade ou fraternidade ou amor. Ah, como eu gostaria que tudo o que falo aqui fosse mentira. Mas não é.
Ela tinha apenas 6 anos. Mal sabia ler. Aguentou por quatro anos o que nenhuma mulher aguentaria uma só noite. Ela tem apenas 10 anos. Ela não é uma mulher. Crianças gostam de brincar. No 5º ano a matemática passa a admitir letras em suas equações. A vida fica muito dura aos 10 anos. Há sempre uma sombra quando não se tem os pais por perto. O caminho passa a ser estreito e a floresta tem olhos, mãos, falo. E o silêncio cai sobre as meninas como noite sem estrelas. E nos esquecemos, no dia a dia, de olhar para elas, as meninas e perguntar: o que está acontecendo? Qual a razão de ter mudado, de estar agressiva, ou triste, ou chorosa, ou irritada, ou apegada demais, ou distante? A distância que abraça muitas delas não as largam nunca mais. E seus destinos são diversos. Perdemos uma a uma. Hoje ela vai dormir em paz? Hoje vai conseguir sonhar com a brincadeira preferida?
O núcleo da falência da família é a incapacidade de se comunicar livremente e com profundidade. Não ditar regras. Não escolher pelo outro. Apenas, em diálogo, abrir uma clareira em que se possa falar sobre seja lá o que for. Sem naturalizar o inaturalizável. Crianças ainda são e continuarão sendo crianças. E criança não é e nunca poderá ser sexualizada. Deveríamos estar nesse momento olhando para o papel da família, para a possibilidade de se estruturar ou não um núcleo de afeto e segurança que só então poderá ser chamado de família. Laços familiares vão muito além de laços consanguíneos. O corpo é e sempre será inviolável. E a vida da pessoa que gera é anteriormente preservada a qualquer outra condição que possa vir a ser. A falácia da preservação da vida deve acabar imediatamente se o que a sustenta é o despropósito fanático. Pois a vida a ser preservada e defendida é a do planeta e ninguém grita aos quatro ventos que não podemos mais derrubar árvore alguma.
A verdade é que a responsabilidade é pesada demais. Não queremos esse fardo. Apontamos e julgamos e gritamos que a outra pessoa está errada. Mas estamos todos falidos no que se refere ao diálogo, entendimento e ações orientadas ao bem comum. (Vixi, falei o termo maldito “bem”. E agora vão me bater com a palmatória antimoralista. Será que terei de colocar minhas referências aqui?)
Será que conseguimos olhar para o fato e dele chegar ao que realmente é o problema? Sem nos inflamarmos com o que sentimos ou pensamos em nossos critérios morais que são pessoais?
Quantas vezes você ouviu uma criança chorar de madrugada? Quantas vezes você, cansada do trabalho, se levantou para verificar o que estava acontecendo? Por que ela chora?
Quantas vezes você percebeu algo estranho com alguém e parou para ouvi-la?
Quantas vezes você acusou um abusador?
A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil.
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