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Eu e Sophia, para resistir à força do amor

Foto do escritor: Flavia QuintanilhaFlavia Quintanilha

Quantos amores conheceremos ao longo da vida? Quantas fissuras serão necessárias até que o coração se esfacele totalmente sem que sobre um único ai a se contar? Lá vou eu de novo, falar sobre aquelas coisas que pouco acertamos, ou erramos. Um virar a esquina, um folhear o jornal num café, um procurar o livro na prateleira do sebo, em cada cantinho ele está à espreita. Basta uma distração e pronto, já está você apaixonada. Basta uma brisa de mares do sul, uma pimenta de cheiro, uma dança qualquer e seu coração está fisgado pelo olhar da ternura, pela boca do inesperado, pelo corpo que promete o impensável. Ah, quantas músicas serão ouvidas com o coração aos pulos até que as mãos se encontrem num descuido de agarrar o objeto, dia ou noite, em voz suave romanticamente desejada. Eu penso sobre as banalidades que poderiam nos aproximar, a manhã ensolarada de primavera, a noite quente de verão, as ruas cortadas pelo vento gelado de inverno na cidade baixa. Ouviremos um fado, uma salsa, um bolero, qualquer nota que aproxime nossos corpos num bailar sem plateia. Somente você e eu nesta história que contaremos dia a dia, sem vírgulas ou ponto. Tudo acontece, sem querer. O pensamento que um dia foge o real e já não posso mais o conter. Cada momento de folga, em meio ao dia atribulado, no carro que atravessa o sinal fechado, na menina de bicicleta… lá vai meu pensamento te encontrar. Você, meu segredo mais recente, que de repente me faz rir sem saber porque. Eu que nem tenho nada a oferecer, a não ser um olhar apaixonado e a poesia do comum, estou aqui abrindo peito e esperança de poder te dizer essas coisas só para você ouvir. E por isto escrevo, para que o mundo apague a loucura de querer aquela que me ilumina e não está. Como conduzir o destino se nem estrela há em meu céu? Mais uma vez, aberta à possibilidade da ilusão e nem medo me ronda. Como dizer isto de maneira mais real, menos poética e acertar de vez o caminho que me conduz até você? Mais uma vez entrego minha coragem à possibilidade. Mais uma vez, meu coração entregue ao amor que nem sei existir. Mais uma vez escrevo para àquela que não lerá a minha carta de amor.


Solitários pilares dos céus pesados,

Poetas nus em sangue, ó destroçados

Anunciadores do mundo

Que a presença das coisas devastou.

Gesto de forma em forma vagabundo

Que nunca num destino se acalmou.


A solidão imposta aos meus dias sugere que eu deixe de sonhar. Mas se for esta a verdadeira? Pergunta toda pureza de minha ingenuidade e mais uma vez me iludo. E eu fico a me perguntar, crio a ilusão para não sucumbir à solidão ou preciso da decepção para a vida passar mais lenta e eu poder ver a poesia que existe nela? Tenho em mim tantos poemas que já não sei mais ser a minha própria voz. Sou invenção desafinada do temporal que se forma em meu céu quando quero passar invisível pelo tempo. O amor, o que é? Não sou mais minha voz, ao desafinar a invenção de outra história.


O poema me levará no tempo

Quando eu já não for eu

E passarei sozinha

Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá

Às searas

Sua passagem se confundirá

Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará

O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes

Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas

Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará

Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas

De funda e devorada solidão

Alguém seu próprio ser confundirá

Com o poema no tempo

poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen

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