Cedo ou tarde você deixará de existir. Superficialmente pensamos que sim, todo mundo morre. Não ao mesmo tempo, mas um dia. Mas o caminho que me interessa é outro. Uma pessoa deixa de existir sem o reconhecimento de outra pessoa ou grupo? Se pensarmos de forma individual, é possível anular a existência de alguém em sua vida ou ela mesma ao ser esquecida ou ignorada quando não for mais necessária para aquela pessoa ou grupo? Falar com naturalidade sobre isto pode causar um grande incômodo para algumas pessoas, mesmo sendo possível que elas mesmas também usem desse artifício, o desprezo. Mas se o desprezo for aplicado por um grupo ou para ele? Funciona? Ou seja, ele deixa de existir? Ele se refaz? Ele se reconstrói diante das críticas? Ou se reafirma mais e mais como já antes se apresentava?
O desprezo é um dispositivo fortíssimo quando se trata de dominar. Uma amante usa o desprezo quando se sente esquecida. Um amigo ou parente também se vale dessa artimanha. É possível conseguir muita coisa com esse artifício. Mas em questões político-sociais, como funciona?
A Sociedade do Desprezo, teoria crítica que defende que as patologias sociais não podem ser reduzidas às desigualdades e que a injustiça social se traduz em falta de reconhecimento e não em admitir a exclusão social, pode causar um conflito generalizado entre comunidades e instituições. E como podemos entender o reconhecimento? Em seu livro “Luta por reconhecimento” Axel Honneth busca traçar uma gramática moral dos conflitos sociais. Longe de querer explicar o livro aqui e, muito menos tê-lo como a solução do problema, penso que pode ser interessante falar um pouco dessa alternativa. Para Honneth o reconhecimento envolve três esferas, “a dos afetos e da autoconfiança; a das leis e direitos, do auto-respeito; a da solidariedade social e da autoestima. Ela figura como uma teoria da apresentação ou da memória, que permite que se reconheça algo e o reafirme. O que está intimamente ligado à lembrança, fazendo que o processo de reconhecimento passe pela memória e o desejo e a lei. Em outras palavras, um processo de relação do indivíduo com ele mesmo e com os outros. A identidade de alguma maneira depende disso. O reconhecimento, portanto, não é apenas a narração do próprio desenvolvimento, mas o que não foi reconhecido durante o desenvolvimento individual. Há uma dose cavalar de psicanálise nisso tudo, percebe? Um bom exemplo disso é o uso que ele faz do conceito de auto-relação de Freud, que afirma que a relação com o outro está mediada com a relação consigo mesmo. O interessante é admitir que o sujeito pode estabelecer ou não esta auto-relação. Então o reconhecimento é justamente a dificuldade de contar uma história com auto compreensão de si. Ah, sim, a terapia é fundamental, pois a auto-relação é considerada por muitos teóricos como o self primário. Quando o sujeito se nega ao processo de auto-relação, isto acarreta em um déficit social de relação. Em uma sociedade do consumo a reificação é inevitável, ou coisificação. Como queiram. A reificação é apenas um dos diagnósticos das consciências, que podem se apresentar danificadas ou alienadas, as emancipadas e as alteradas ou até reificadas. Assim, a reificação envolve processos sociais e psíquicos. Mas Honneth não se importa em descrever esta relação, mas apontar como afetos individuais se tornam sentimentos sociais. Ele caminha demonstrando que são essas relações o ponto fundamental e que, tomando Winnicott, entende que tudo gira em torno de amar e ser amado. Nesse sentido, por mais que se redistribua os bens é necessário realizar o reconhecimento, ou nunca resolveremos os problemas sociais.
Sim, chegou o momento do exemplo. E posso dar dois: o primeiro, o caso relatado no episódio “CPF na nota?” APRESENTAÇÃO ATO 2 Operação impensável, do casamento da jornalista Vanessa Barbara com o sócio da editora Todavia. Uma história grotesca e nauseante de como um clã de machos alfa se comportam em privado. Outro exemplo, a história de um grupo de mulheres escritoras que não apoiam nem reconhecem outras mulheres do grupo como negras ou indígenas e muitas vezes fazem afirmações de desmerecimento, como por exemplo, quando abrem editais literários exclusivos para escritoras negras ou indígenas. Como se tivessem um sentimento de “racismo reverso”. Dá pra entender? Para o primeiro exemplo, muitas pessoas tentam justificar as ações dos homens envolvidos, por ter sido há 14 anos ou até blindando o acesso aos nomes deles. O que não tiveram sucesso. O segundo exemplo, a falta total de sororidade.
Certamente, Honneth não iria tão direto ao ponto singular como universalista que sempre foi. Mas os exemplos servem para ilustrar o perigo da falta de reconhecimento. A falta desse processo que o filósofo sugere como um grande passo para um crescimento estrutural e emocional, alavanca para possibilitar uma discussão profunda e assertiva para tratar dos problemas. Ao que me parece, ele está propondo que façamos a lição de casa. Que antes cada um olhe para si, num processo legítimo e corajoso de autocompreensão. E que a partir daí será possível se pensar em leis e solidariedade (num patamar político é claro. Já falei sobre esse tema em outros textos). Enquanto insistirmos em varrer toda sujeira pra debaixo do tapete, enquanto o número de seguidores ou a auto aparência nas redes for o mote para tomarmos decisões, enquanto continuarmos gritando: olha eu aqui, ou ainda, olha o meu problema, ou até, eu sei mais sobre isso ou aquilo … enquanto a barulheira continuar nunca falaremos com franqueza sobre os reais problemas, tampouco encontraremos uma resolução temporária em forma de consenso.
Entregar-se à angústia de viver e afirmar a própria liberdade, diriam os existencialistas. Qualquer coisa que não seja viver consciente as próprias escolhas passa a ser o maior ato de deslealdade.
Continuamos com a birra em frente à loja de brinquedos? Vai saber.
Psiu, dá um like aí vai!
"O homem está condenado a ser livre. Condenado, pois ele não se criou a si mesmo, e, por outro lado, contudo, é livre, já que, uma vez lançado no mundo, é o responsável por tudo aquilo que faz."_ Jean-Paul Sartre
Comments