O Spotify para muitos pode ser considerado o aplicativo mais bem sucedido do milênio. A possibilidade de você encontrar num só lugar tudo o que se deseja ouvir faz a alegria de seus usuários. Mas confesso que ouvir a Sinfonia n.° 8 de Beethoven sob a regência de Karajan sem ouvir aquele puladinho na terceira faixa de meu amado vinil quebra um pouco o clima. Por muitos anos essa foi minha sinfonia preferida e fui eu mesma que causei o “furo no disco”. E logo agora em que estamos em casa curtindo esse momento interior, obrigados por uma pandemia, que gostaria imensamente de ouvir a falha nessa passagem.
Não sei você, mas eu ando com o pensamento vagando por diferentes momentos de minha vida. Já revi e revivi despedidas e acasos por toda a minha história. Confesso que me faz muito bem saber que onde estou é onde quero estar, mas o caminho foi longo e digno de várias vidas. Interessante pensar que o que me chama a atenção é aquele tema que teimo em escrever nessa coluna, o amor. “Eita cabra que leva porrada!”
Numa espécie de inventário do amor quero percorrer o caminho todo com vocês. E começo por hoje! Quão difícil é amar! Não é mesmo? Não podemos dizê-lo, mas o grande problema é que se incorporou tanto essa ideia que hoje o grande lance é nem sentir. Já não conseguimos. Queremos ser livres e por algum motivo equivocado se uniu liberdade com “não amo ninguém”. Reverencio tanto meu corpo que dele quero só o prazer. E o prazer que consigo é pelo corpo de outra pessoa que também não ama ninguém. Confundiu-se auto estima com amor próprio. E nos equivocamos ao buscar a vastidão inócua do gozo sem o eu. Gozar sem ser o próprio prazer nos joga num infinito de insustentável solidão. Não nos é possível viver bem assim. Basta olhar para quem sofre hoje ao fazer a “quarentena”. Já não podemos nos tocar, pois o medo se revela antes do gozo. Já não mais nos beijamos ou dançamos ou sorrimos. Nem um simples toque de mão. Estamos presos com e em nós mesmos e não suportamos isso. Que saudade de um toque qualquer seja lá de quem for. Mas isso tudo passa longe de ser o amor.
A presença sincera de um olhar. A estima de si e por consequência de todos os outros. A condição elevada de felicidade que verte de um único lugar, o eu que ama. Quanto sofrimento hoje cessaria se o amor nos tomasse. Quanta miséria e comiseração se dissiparia. Quanta dor em solidão se apagaria. Quanta depressão não encontraria terreno fértil para semear seu desespero. Aceitar a si e ao outro no amor mudaria tudo, transformaria o rumo de nossas vidas. Amar livre e sem limite nos levaria a uma verdade de satisfação sem fim. Ter medo de amar é na mesma proporção ter medo de ser amado e não há miséria maior.
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição Onde tudo nos quebra e emudece Onde tudo nos mente e nos separa. Que nenhuma estrela queime o teu perfil Que nenhum deus se lembre do teu nome Que nem o vento passe onde tu passas. Para ti eu criarei um dia puro Livre como o vento e repetido Como o florir das ondas ordenadas. [Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Obra Poética”]
Dias iluminados, e fiquem em casa!
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