Distorcendo um pouco Platão, quando faz a metáfora da alma com o tonel furado e que nunca estará preenchido. A alma a que se referia era a psyché e essa coisa insaciável sem dúvida seria o conhecimento. Mas nos desviamos. Deixamos o pequeno para perseguir o grandioso, o máximo, o incrível. E a vida não é nada assim. Ela é feita de coisinhas, das pequenezas. Do que não aparece na primeira capa da revista, nem tem espaço nas lives. É um grande baú de miudezas que vamos colhendo com o tempo. Mas a vida ocupada demais não tem vez para isso. Não cabe. Deixar a vida desocupada parece que é a dificuldade maior do viver. Inventamos coisas e métodos e horários e compromissos e importância para o nada da vida. Ah, como é feliz quem tem a vida vazia. Como é plena a pessoa que desata esse nó e não se preocupa jamais. Que desapega e recebe a vida com as mão desocupadas. É mesmo difícil receber a divindade do viver se estamos carregando um monte de tralhas. Carreira, afazeres, desejos de ter e poder. Que desperdício! Ocupada assim a vida não terá olhos para a delicadeza.
“Ora, se nosso bem-estar consiste em fazer e escolher o que é grande, e evitar e não fazer o que é pequeno, qual seria o princípio salvador da vida humana? A arte de medir ou a força da aparência? Não nos ilude esta última, levando-nos muitas vezes a inverter as relações das coisas, a modificar nossos propósitos e a nos arrependermos da resolução tomada, não só com referência aos nossos atos, como com a escolha das coisas grandes e pequenas? A arte da medida, pelo contrário, não neutralizaria essa ilusão, com resolver a verdadeira relação das coisas, e não asseguraria à alma a tranquilidade fundada sobre a verdade, salvando, assim, nossa vida?” (PLATÃO. Protágoras, 356d)
De tão inútil já não tenho mais palavras. Somente tenho a certeza das estações que trazem as íris de volta ao quintal e florescem a mirra de onde as jataís servem-se da vida. E tem raio de sol, e tem folhas que caem e logo esverdeiam as paredes. Do ocre ao verde os dias se fazem … vazios … e silenciosamente teço a solidão de não me entregar mais ao que é grande demais para meu viver.
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