Ao contrário de Lili Schwarcz não penso que a pandemia revelou as agruras dos que sofrem no Brasil. Isso é tão explícito em nosso dia a dia que sinto até vergonha quando alguém revela nunca ter visto. Mas entendo quem não conseguia ver do ponto em que estava. De seu trajeto para o trabalho com seus vidros erguidos e ar condicionado ligado. Dos que estavam com a cara metida nos livros teorizando a pobreza sem nunca ter sentido fome ou nem mesmo ter conhecido uma pessoa sequer que não consegue pagar a conta de luz no final do mês. Entendo que é difícil ver o sofrimento dos que apanham ou sofrem a violência diária sem nunca terem andado descalço em asfalto quente ou que nunca sujaram a roupa catando uma fruta, roubada, no quintal do vizinho desconhecido. Ah, sei muito bem como é não entender a fome daquele que revira seu lixo enquanto recebe seus amigos para o brunch.
Fazemos isso há tantos séculos que esquecemos de assimilar que a Lei Áurea foi um teatro necessário para nos livrarmos da dívida e aquela que não pagaremos tacamos fogo na floresta para que não reste testemunha do que fizemos. Digo fizemos, envergonhada, por ser eu também uma das que ceiam o privilégio de estudar – mesmo que seja com dificuldade – e pensar sobre esse cenário horrendo que amanheceu tão nítido como a luz da manhã.
Se agora podemos ver essa caricatura imperfeita que desvela-se diariamente desde 1500 e não há mais como ser tão repetitiva, o que se revela hoje no Brasil, o país do futuro, é a face cínica do egoísmo. Do querer bem a si mesmo e que essa ralé não entre aqui. Não nessa casa aconchegante e limpa. Que entre lá na casa dos sujos. Daqueles que guardam meus recicláveis para sobreviver. Pois quem paga tem o direito de ouvir a voz dos anjos.
Revela-se egoistamente o dedo em riste para apontar aquele que não pode, aquele que segue o senso comum, aquele que contamina. Aqueles que não compreendem que o que seguem não os levará à salvação. Aqueles que são o resultado de tudo o que receberam até hoje. É tudo mais do mesmo. E que possam dizer: não me tirem nada do que conquistei. Quero continuar com meu carro na garagem, com meus sem números de calçados e roupas e livros e viagens e histórias bem sucedidas. Quero ainda o abate dos animais que fazem da minha mesa farta. Quero sorrir após cada encontro desnecessário com aqueles que bajulo e garantir meu lugar ao Sol.
Que passe logo essa peste, pois não suporto o espelho que me mira todas as manhãs. Marco no calendário o dia em que poderei sair novamente aos lugares que sempre gostei, para fazer o que sempre fiz. E se depois de tudo isso boa parte dos desvalidos tenham ido embora, melhor assim! O mundo andava cheio demais!
Entretanto, agora … por hoje, apenas espero que meu ifood não demore tanto. A comida estava fria ontem.
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